quarta-feira, 19 de agosto de 2015

hoje apeteceu-me matar alguém

hoje poderia vir aqui falar de banalidades fúteis, mas que me deixam alegre, tais como as modas que pairam nas montras e que vêm ao encontro da minha satisfação pessoal. Paralelamente a isso, postava a foto do chapéu e do casaco pelos quais me apaixonei ontem e ficava aqui um texto levezinho, aromatizado com as canduras quotidianas.
não será o caso. Há coisas que tenho dificuldade em digerir e quando assim é, tenho de exorcizá-las de alguma forma. Posto isto, escrevo, que creio ser a minha forma mais imediata para expurgar algo.

cena 1: restaurante.
entra um casal, cinquenta anos mal medidos. Não são para aqui chamados cor ou religião. Ele à frente dela, ela atrás dele. Ele diz-lhe onde ela se senta. Ela acata, submissa. A voz dele fazia-se ouvir sem rodeios. A dela, quando enfim se pronunciava, saía em múrmurios vestidos a medo. Chega o prato que ele pediu: rejeita-o, imputando uma série de defeitos de baixo calibre à ementa, ao restaurante e afins. Vislumbro em mim uma sentida compaixão pelo empregado, porque já se sabe, isto de lidar com o público tem muito que se lhe diga, pois tem. Enquanto isto, a mulher acata com murmúrios de lã, lá está, proferidos a medo, que sim, claro, o seu excelso cavaleiro tem toda a digníssima razão. 
O empregado vai embora com a travessa de comida. 

cena 2: casa alheia
passo numa rua, próximo das janelas entreabertas de uma casa qualquer. Lá dentro há uma criança que chora. O choro é esmagado pelos gritos absurdamente altos de um homem, sei lá eu se era o pai.
Ouço baterem na criança, cujo choro se intensifica. Surge uma voz feminina, que se interpõe ao comportamento dele em relação à criança. Ouço de novo uma bofetada. Desta vez já não sei quem foi que levou com ela. Parei a ouvir isto, com o coração a bater-me na garganta, com uma vontade tremenda de entrar pela casa dentro e levar aquela criança dali para fora, dar-lhe colo e compreensão e perguntar a ela, à mulher cuja voz ouvi, quando se decidiria ela a começar a viver, porque aqueles escassos minutos soaram-me a tudo, menos a vida.

E já que estava eu própria pejada de fome de justiça, aproveitava ainda o momento e voltava ao restaurante, porque de certeza que ainda iria a tempo de apanhar o outro tipo e forçava-o a engolir a comida que tinha pedido e que voltou para trás, ao mesmo tempo que ele assinava uma penitência de bom trato, face à mulher que o acompanhava e face, já agora, a todas as vidas que tinham o infortúnio de se cruzarem com a vida dele.

não sei como é possível sobreviver a uma existência domesticada segundo parâmetros alheios e pior, esgotar uma vida inteira nisto.
não sei. é atroz. é desumano.
e talvez um dia me dedique seriamente a este tipo de causas, porque acredito que não haja nada pior do que respirar sem viver. 



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